Maria do Céu Gonçalves: “O mercado do preço e do bag-in-box não acrescentam valor”.

Maria do Céu Gonçalves: “O mercado do preço e do bag-in-box não acrescentam valor”.

Diz conhecer cada um dos seus 700 colaboradores pelo nome. E a julgar pelas horas que passámos com Maria do Céu Gonçalves, para uma grande (e rara) entrevista na Quinta da Pacheca, é bem capaz de assim ser. No final de uma conversa (ver a primeira parte, em que a administradora da Terras & Terroir anuncia a compra da Ribafreixo Wines, no Alentejo, entre outros investimentos) em que lhe perguntámos quem a aconselhava e nos respondeu que, entre os mais próximos, o marido, Álvaro Lopes, e o também sócio Paulo Pereira, uma colaboradora comentou: "Estava a ouvir a pergunta e a pensar: aconselha-se com toda a gente. A Maria do Céu ouve toda a gente".

Ouve e interpela, às vezes muito cedo, seja com trabalho puro e duro, seja com leitura de interesse — um desses links falava de 500 patos que cuidam de vinhas em Stellenbosch, na África do Sul. "Todos os anos, fazemos uma viagem de team building com a equipa de enoturismo. Já fomos à Toscana, a Napa e à Rioja, este ano vamos a Stellenbosch." Dizem que é ambiciosa e fazedora. Às seis da manhã já está a trabalhar. O seu escritório é "ambulante", muitas vezes a bordo de aviões.

Na Pacheca e nas quintas que em dez anos transformaram um investimento que não procurava num grupo de respeito, põe em prática o mesmo que defende para os vinhos portugueses: "para o nosso negócio ser sustentável, não vendemos o nosso vinho mais barato que 9,5 euros, é por aí o nosso caminho".

Qual é a paixão que a move? É o vinho, a terra, o património, a família…?
São as várias coisas do que disse. É a terra, é muito a família também, é ver o futuro da família e das famílias que aqui trabalham. E depois vem o património, obviamente, como todos os empresários, mas a terra e muito a ligação às nossas raízes em Portugal.

Falou em famílias e nas que aqui trabalham. Quantas pessoas trabalham no universo da Pacheca e do grupo Terras & Terroir?
Aqui em Portugal são 200 pessoas e no total, com França, 700.

Os vossos negócios em França também são um canal privilegiado para vender o que fazem em Portugal, na Agribéria nomeadamente.
A Agribéria já representou, quando chegámos à Quinta da Pacheca, 80 por cento das vendas. Neste momento, representa 15 por cento das vendas do grupo Terras e Terroir, que já vende em 32 países.

Como é que os franceses vêem os vinhos portugueses?
Os franceses são muito, como é que se diz, chauvinistas, para eles o melhor queijo é francês, o melhor vinho é francês, o melhor enoturismo é francês. E, ao princípio, quando ia apresentar os nossos vinhos, diziam-me: Portugal tem vinhos? Claro que temos. E depois, quando provam, ficam realmente surpreendidos. E até acham os nossos vinhos baratos em relação à sua qualidade. E, quando vêm aqui ao enoturismo, ficam com memórias incríveis da região, do que cá comeram, da simpatia com que nós recebemos. Esse é o nosso ADN.

Como é que França se posiciona nesses 32 mercados?
Na exportação dos nossos vinhos, está no top 5. No enoturismo, não está no topo. São os EUA, Brasil, Inglaterra, Alemanha e Suíça. A França vem depois.

Este ano, pela primeira vez, França foi ultrapassada pelos Estados Unidos pela exportação dos nossos vinhos em geral e muito por causa da queda das vendas do vinho do Porto, do chamado Petit Port. Como é que acompanha essa realidade?
Nós nunca fomos para o mercado do preço, fomos sempre para o mercado de qualidade. Nós vendemos os nossos vinhos de 10, 20, 30 e 40 anos e apostamos muito nesse negócio dos vinhos com idade. Mesmo os nossos vinhos de entrada de gama vendem-se em França a 8 euros, enquanto os Porto Cruz custam 4,99 euros, 5,99 euros, mas isso é o vinho que [os franceses] compram para os molhos, é o aperitivo dos avós.

Para nós isso é impensável, mas também o nosso vinho Madeira é exportado para ser usado em França como molho. É exportado já com sal e pimenta, como Sauce Madeira.
É essa a realidade. Mas nós não estamos nesse mercado, felizmente. Eu que o conhecia bem, fugi logo dele, porque não o acho nada interessante. Nem valoriza as marcas. Ficamos bem no mercado da qualidade dos vinhos do Porto, ensinamos os nossos consumidores a beber vinho do Porto, com temperaturas [correctas], a acompanharem um bolo de chocolate com Vintage, fazemos muitos eventos em que os jovens estão habituados a beber gin tónicos e nós trocámos [o gin] por Porto Tónico. Temos uma empresa de promoção em França que faz esse trabalho. E temos uma distribuidora de vinhos.

A Misterwine?
Isso é em Portugal, lá temos outra.

Como é que olha para o negócio do vinho em Portugal? Na sua opinião, o que está bem e o que está mal?
Acho que estamos a bem, como não temos quantidades, temos que ir para a qualidade e quando comparamos os vinhos portugueses com vinhos de países muito próximos de nós, sejam espanhóis, sejam franceses ou italianos, acho que nós temos uma excelente relação de preço e excelente. Até os vendemos baratos em relação à qualidade que temos. Estamos no bom caminho, com excelentes enólogos, grandes terroirs. Temos que apostar na qualidade e depois é termos a capacidade de os vender para exportação, porque o nosso problema é não nos afirmarmos como país que produz excelentes vinhos, não é?

E o que está mal?
Acho que as empresas que vão para o mercado do preço e do bag-in-box. Vejo empresas portuguesas a irem comprar a Espanha para embalar. Acho que isso está mal e não traz valor acrescentado ao mundo dos vinhos. O nosso caminho é encontrar bons terroirs, produzir bons vinhos com tecnologias modernas e, depois, pô-los a estagiar. O estágio é um dos segredos do vinho, mas leva tempo. Os gestores não gostam muito disso. Na realidade, eu estou sempre entre o gestor que quer facturar mais e o enólogo que quer estagiar.

Mas tem essa sensibilidade para atribuir valor ao estágio. Se estivesse nas suas mãos a tal medida, uma medida para o sector, qual seria?
Defendo que Portugal deve produzir com qualidade e deve promover esses vinhos no mundo de exportação, em concreto junto dos americanos. Os americanos gostam dos nossos vinhos, e acham incrível como é que não sabiam que fazíamos assim vinhos tão bons.

Porquê meterem-se no vinho, um negócio com margens tão baixas e tanta concorrência. É a tal questão do integrado, não é? Vinhos, enoturismo, é o tudo?
Considero que não temos margens baixas, temos as margens necessárias para as nossas empresas serem rentáveis e para termos dentro da empresa colaboradores bem pagos. E para o nosso negócio ser sustentável, não vendemos o nosso vinho mais barato que 9,5 euros. É por aí o nosso caminho. Preservamos sempre a rentabilidade, para poder acompanhar os investimentos novos, para poder acompanhar a salários dos nossos colaboradores. Para não serem tentados a ir trabalhar para Espanha ou para não sei onde.

Alguma vez sonhou, nos tempos do seu restaurante, nos arredores de Paris, com um negócio desta dimensão?
Francamente, há 25 anos, não sonhava vir trabalhar para Portugal. Nunca sonhei vir trabalhar para Portugal. E o que me move é que em França tenho um sentimento de que tudo está feito, que a empresa está organizada, que que não há grande coisa a desenvolver, é só ficar atenta ao negócio. Aquilo que me move é pegar numa quinta que vende a 80 mil garrafas e tem cinco colaboradores e desenvolvê-la [e hoje vender 1,7 milhões de garrafas por ano, no caso da Pacheca]. E já sonho é em não ir para França ou em passar lá duas semanas por mês, porque, neste momento, faço uma semana cá, uma semana lá.

Ainda é importante o negócio lá?
O negócio em França é outro e facturámos 60 milhões de euros em 2022. Já tenho o meu filho a trabalhar comigo lá em França, tem 28 anos.

E a filha está cá. E comprometida com o negócio da família, segundo percebi.
Está cá em Portugal. Ainda é muito jovem. Ainda acho que ainda é muito jovem para falarmos em compromisso, mas o que é bom é que ela está a gostar e já estagiou aqui. Agora estou a tentar que ela vá para um curso de enoturismo.

 

10 de fevereiro de 2023. 

Entrevista: Jornal Público.

Texto: Ana Isabel Pereira.

Fotografia: Rui Oliveira. 

 

Continuar a ler

Grupo vinícola e de enoturismo começou no Douro e expande-se no Alentejo.
Vinhos Verdes e Algarve estão na mira do grupo dono da Quinta da Pacheca e que prepara vários outros investimentos.